Propriedade intelectual e os limites entre a defesa e a advocacia da concorrência
- rafaelk2077
- 29 de mar. de 2018
- 5 min de leitura
O fato do Cade gostar de concorrência e o INPI de monopólio não justifica a condenação pelo Cade a quem recebeu pelo INPI direito de usar a PI
O Cade existe de fato desde 1994, com a promulgação da 1a lei da concorrência (Lei 8.884/94), mas passou a ter notoriedade a partir de 2014, com a Lava Jato e a Lei Anticorrupção. Seu nome, assim, se popularizou no âmbito dos Processos Administrativos Sancionadores (PA), devido às leniências e aos acordos nos casos carteis, que têm rendido anualmente aos cofres públicos quantidades cada vez mais significativas. Só no ano de 2017 o Cade arrecadou para o Tesouro Nacional algo na casa de R$ 1 bilhão. Amadurecer requer tempo, por isso vale comentar decisões acertadas pelo Cade em sede de PA.
Foi o que ocorreu na Sessão Ordinária de Julgamento do dia 14/03/18, quando dito Tribunal arquivou um PA iniciado há 12 anos. Neste, a Associação Nacional de Fabricantes de Autopeças (ANFAPE) acusou três montadoras (Ford, VW e Fiat) de estarem abusando do uso regular da propriedade intelectual (PI) no concernente à venda de autopeças avulsas no mercado de reposição (aftermarket), em contraponto à venda destas peças na montagem de carros novos (foremarket). Esse tipo de monopólio temporário é concedido pelo INPI, se fundamenta na Lei 9.279/96 (LPI) e é uma política pública, assim como é a política da concorrência. Como regra geral, o INPI concede prazo de 10 anos, podendo ter 3 extensões de 5 anos, totalizando em 25 anos o prazo máximo.
Vale dizer que, do ponto de vista econômico, o Estado concede uma PI quando o custo fixo de investimento é elevado e o custo de cópia por um terceiro é baixo. É o caso da concessão de uma patente para um determinado medicamento (devido ao significativo custo em P&D até encontrar a droga para uma doença-alvo e à facilidade de se copiar os princípios ativos combinados no remédio) ou da concessão de um direito autoral para um certo livro ser escrito (devido ao custo monetário e de tempo na formação de capital humano e na escrita da obra e à simplicidade em copiá-la).
No caso do presente PA, trata-se do registro de desenho industrial (RDI). Como um carro tem em média 10 peças com RDI em um total de 2 mil, este PA refere-se a poucas peças/carro, ótimas de serem copiadas, pois têm rent. É o cherry picking por parte do caroneiro.
Neste sentido, a permissão ao monopólio temporário é concedida para que o retorno do investimento no design das peças individuais possa ocorrer, evitando a presença de caroneiros. O objetivo do Estado é incentivar a invenção, que pode levar à inovação que, por sua vez, pode acarretar em aumento da produtividade[1]. É, assim, uma política pública desejável, em geral.
A relevância desse PA para a jurisprudência do Cade é deveras relevante, pois, além de encerrar uma controvérsia de 12 anos, é um caso didático para diferenciar defesa e advocacia da concorrência. Ambas as políticas buscam maximizar o bem-estar social, focando no aumento da produtividade do país, mas têm mecanismos distintos para alcançar esse objetivo final.
Defesa da concorrência é uma política reativa, exercida pelo Cade e divide-se em dois tipos: repressão e prevenção a condutas anticompetitivas. No primeiro caso, analisa-se uma suposta infração à ordem econômica em sede de PA, em que, no caso de condenação, o Cade é obrigado a identificar os agentes envolvidos, a conduta cometida e a demonstrar o dano causado. No segundo caso, trata-se de análises de Atos de Concentração (AC), em que o Cade faz controle da estrutura do mercado para garantir que estes funcionem ao menos tão bem quanto antes do AC.
Advocacia da concorrência, por sua vez, é uma política proativa. O objetivo é identificar instrumentos que incentivem os agentes econômicos a agirem de forma a fomentar a concorrência. Sugerir alteração legislativa é um exemplo de um vasto conjunto de ações. Hoje esse papel é feito pelo Ministério da Fazenda.
Com respeito ao PA em tela, no âmbito da defesa da concorrência, de acordo com o art. 68 da LPI, o INPI constatou que não houve conduta abusiva por parte das montadoras, até porque o RDI é dado para a peça, independentemente da onde esta será vendida. Entendimento similar tiveram a Justiça e o Cade. Afinal, a exclusão de competidores ou a imposição de preço acima do justo não decorreu de ação anticompetitiva por parte de nenhuma das montadoras, tendo sido uma consequência lógica da própria lei (LPI), que concede monopólio temporário. Por esta razão, não há que se falar em infração à ordem econômica no caso em voga.
De fato, mesmo que copiar sem o consentimento daquele que obteve o direito a exercer a PI não fosse crime (que é, pelos artigos 187 e 188 da LPI), o Estado deve evitar gerar incerteza jurídica por meio de decisões de suas autarquias. No caso especifico, se o Estado – por meio do INPI – concede qualquer tipo de PI (patente, RDI, direito autoral, etc.) a um agente econômico, o Estado – por meio do Cade – não pode condená-lo pelo uso regular de dita PI. Foi o que concluiu acertadamente o Cade neste PA (muito embora tenha sido por maioria e não por unanimidade). O fato do Cade gostar de concorrência e o INPI de monopólio não justifica uma condenação pelo Cade no concernente a quem recebeu pelo INPI o direito de usar uma PI. O limite da defesa da concorrência é claro, pois se está diante de duas políticas públicas legitimas.
Uma não condenação neste caso não quer dizer, entretanto, que as montadoras não gozem de benefícios questionáveis concedidos pelo Estado. Deveras, esta é a situação do setor automobilístico há 60 anos (ver o texto intitulado Competição externa é a solução para a indústria automotiva, Valor 13/12/17). Todas estas benesses, desta forma, precisem ser revistas, que inclui a concessão de RDI.
Esta revisão, contudo, deve ser feita no âmbito da advocacia da concorrência. Para corroborar dito entendimento, vale dizer que todas as jurisdições benchmark no mundo procederam pela via da advocacia da concorrência, nunca pelo caminho da defesa da concorrência. Nestas jurisdições (Europa e EUA), o objetivo foi focar na alteração da lei vigente – seja na Justiça, seja no Congresso – quanto ao aftermarket (repair clause).
No tocante ao presente PA, haveria que analisar se conceder um RDI no aftermarket (em qualquer setor, em geral, e no automobilístico, em particular) faz sentido econômico, uma vez que o investimento em P&D deveria focar, em tese, no foremarket. Além disso, 25 anos de prazo máximo de RDI parece ser tempo demasiado, comparativamente ao prazo dado nos EUA (15 anos), um dos países mais inovadores do mundo. Talvez fosse o caso do INPI rever todas as concessões de RDI para 15 anos e de patente para 20. Sem contar que, a depender do setor, esse prazo pode ser interpretado como sendo infinito (i.e., a regulação é não binding). Afinal, é pouco provável que alguém permaneça com o mesmo automóvel por 25 anos. Mais ainda. Se os investimentos com P&D não forem feitos no Brasil, pode ser discutível o Brasil conceder dito RDI.
Em suma, há limites na atuação do Cade, não podendo este ser uma instância revisora de políticas públicas, que foram implementadas por meio de atos Legislativos e Judiciais, cassando direitos, neste caso, conferidos pela LPI e pela CF/88 aos administrados. Traria significativa insegurança jurídica para todos os casos em que o INPI concedeu uma PI. O Cade – que atua na defesa da concorrência – estaria expandindo, assim, a sua competência. Caberia, desta maneira, ao Ministério da Fazenda – no âmbito da advocacia da concorrência – perquirir e propor alteração na LPI, se for o caso. Oxalá seja feita uma minuciosa análise.
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