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Carta aberta ao Ex.mo Ministro Meirelles

  • Foto do escritor: rafaelk2077
    rafaelk2077
  • 6 de fev. de 2018
  • 9 min de leitura

Dom Casmurro e a extinção da SEAE: houve traição?


Há filmes, livros, peças de teatro, quadros, instituições, personalidades, etc. que se eternizam no tempo. Essa imortalidade é um fenômeno que ocorre quando há relevância suficiente no objeto em questão para que este siga ecoando nas lembranças das pessoas. Exemplos não faltam. Dos quadrinhos para as telas do cinema, quem não conhece as estórias de Batman ou não degustou as deliciosas páginas de Macunaíma, de Mário de Andrade; ou deixou de assistir a sofrida, ainda que bela, peça Les Misérables; ou não admirou os estonteantes quadros Quarto em Arles ou Vaso com Quinze Girassóis de Van Gogh? Mais ainda. Quem já não angustiadamente desabafou gritando – como pintou Edvard Munch – algum sentimento imaculado e encurralado do lado esquerdo do peito, como os velhos militantes do antitruste brasileiro fizeram recentemente, em 16/jan/2018, quando extinguiu-se a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do MF?


Deveras, há muito mais imortais a citar, mas vale mencionar mais dois, por se tratar de enredos semelhantes. A perenidade do romance de Dom Casmurro – obra de Machado de Assis publicada em 1899, passada no Rio de Janeiro no Segundo Império – é indiscutível, assim como é a instituição e a marca SEAE, para aqueles que advogam no meio antitruste. É ineludível ao menos para os brasileiros, em ambos os casos. De fato, aquele clássico, cujo enredo causa acalorados debates, pode ser comparado à SEAE no concernente à sua obliteração.


Na magistral obra ora mencionada, por um lado, questiona-se se Capitu – uma mulher avançada para sua época – traiu Bentinho, seu esposo, com Ezequiel, melhor amigo de seu marido e com quem poderia ter tido um filho. No caso da SEAE, por outro lado, indaga-se se um governo, faltando um ano para seu término, por mais que pudesse, não teria sido insensível na extinção da SEAE, se desfazendo de uma marca institucional proeminente no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), cujo reconhecimento é nacional e internacional. É marca que transcende a importância de uma “mera Secretaria de governo”. Decerto, mais do que uma Secretaria, a SEAE era um símbolo, uma insígnia, um orgulho do antitruste brasileiro. Com isso, pode-se interpretar que, da mesma forma com que Bentinho se sentiu atraiçoado – estando correto ou não em sua avaliação –, a história do antitruste brasileiro ou os velhos militantes da área de concorrência no país também sofreram uma suposta insídia. A interpretação pela traição é discutível, claro, mas existe. Teria ela ocorrido de fato?


Conquanto o antitruste em outros países é idoso e maduro, com mais de 100 anos de vida em certos casos, o brasileiro é jovem, com 24 anos se considerar 1994 como a data de seu nascimento, devido à promulgação da primeira lei da concorrência, a Lei no 8.884/94. Nos EUA, por exemplo, berço do antitruste, o Sherman Act data de 1890 e as instituições como FTC e o departamento antitruste do DoJ sempre foram e seguem sendo as marcas dos defensores da concorrência norte-americana, símbolos valiosos do antitruste deste país. No caso brasileiro, o reconto do país inclui uma segunda mudança legislativa (com a 12.529/11), que reforçou o valor das marcas CADE e SEAE.


De certo, a recente história do antitruste brasileiro é interessante e a SEAE teve trajetória curiosa. Embora o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE) exista desde 1960, este não atuava em concorrência até os anos 90. Nem que quisesse daria, pois, entre 1968 e 1991, o Ministério da Fazenda, através do Conselho Interministerial de Preços (CIP), mantinha os funcionários da futura SEAE analisando mensalmente mais de mil pedidos de aumento de preços. Além disso, não raras vezes, o setor privado se reunia e vinha ao CIP acordar preço, numa empreitada vigorosa do Estado para evitar a concorrência e estimular acordos concertados com os mais diversos oligopólios do país. Este fato pode explicar em parte a cultura cartelista brasileira, que permeia no sangue de seus empresários nos mais distintos rincões do país ainda nos dias de hoje.


Naquela época, portanto, traçar estratégias para aumentar a produtividade e fomentar a competição simplesmente não faziam parte da agenda do Estado brasileiro, em nenhuma de suas dimensões. Ainda que a partir de 1989 Collor tivesse dado início à abertura da economia para a competição externa, o argumento para tal feito não recaia na tese de que a competição externa favoreceria o aumento da produtividade brasileira, mas de que o Brasil precisava integrar ao comércio mundial, já que a “tal abertura comercial” era uma onda global, a qual o Brasil precisava fazer parte, ainda que não gostasse. O país, por isso, teve que se adequar às tarifas e às normas ditadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Concomitantemente, já na metade dos anos 90, iniciava no país um amplo programa de privatizações, fazendo o setor público dar às boas-vidas ao setor privado na economia, em conjunto com uma gradual liberação dos preços a partir de junho de 1994 no âmbito da Lei da concorrência, que culminaria com o novo ordenamento econômico do país, com o Plano Real, também ocorrido em 1994, e, mais tarde, em 1999, com a Lei da Responsabilidade Fiscal e a adoção do tripé macroeconômico.


Como competição nunca foi uma palavra bem quista (ou compreendida) pelo brasileiro, especialmente naquela época, medidas protecionistas foram adotadas de pronto (algumas permanecendo até os dias de hoje), como a Lei da Informática, promulgada em 1991 (leis 8.248/91, 10.176/01, 11.077/04 e 13.023/14), para, segundo argumentavam, incentivar investimentos em inovação em hardware e automação por parte da indústria nacional. Tolice. Verdade seja dita: competição é remédio amargo, os empresários não gostam, o Estado tampouco e por isso o Brasil, até os dias de hoje, é uma economia fechada, comparativamente a seus pares como México, Chile, Colômbia, dentre outros países de renda média.


Neste contexto, em 1994, a SEAE, a Secretaria do Direito Econômico (SDE) e o CADE, os dois últimos ligados ao Ministério da Justiça, passaram a formar o SBDC, com o objetivo de defender à concorrência na economia brasileira – através da repressão a condutas anticompetitivas e da análise preventiva de fusões e aquisições – e a advogar por ela. Havia naquela ocasião que aprender como o mundo defendia a concorrência, para, assim, o Brasil alcançar o benchmark internacional neste tema em um espaço de tempo mais curto que faria se não aproveitasse a externalidade positiva do conhecimento de outros. Foi o que se fez. O learning by doing não foi rápido, mas foi consistente e bem fundamentado. Diversos workshops foram realizados na época com as maiores autoridades do mundo e assim a SEAE, a SDE e o CADE foram se profissionalizando. Hoje, o SBDC é a soma de todo um processo de aprendizado desde 1994, de forma monotonamente crescente, com a atuação contundente da SEAE.


Pelo fato da SEAE contar com cerca de 200 pessoas, a maioria formada em economia, era lá que se analisavam os atos de concentração e as condutas unilaterais, deixando para a SDE a árdua tarefa de lidar com os cartéis a partir de 2003. A complementariedade e harmonia no processo instrutório entre as duas Secretarias era de tal ordem que ambas, em conjunto, não só dividiam as tarefas para agilizar a análise dos casos, como criaram a figura do Rito Sumário, elaboraram diversos Guias (Guia H, Guia de preços predatórios, Guia para condutas verticais, etc.), deram início ao bem-sucedido programa de Leniência (em 2001), começaram as tratativas com o Ministério Público e a Polícia Federal para lidar melhor com os casos de cartéis e foram escritas e discutidas diversas versões do que viria a ser a Lei 12.529/11 (a segunda lei da concorrência). Foi muito suor despendido em todo esse processo de inquestionável sucesso e é por isso que SEAE, SDE e CADE são marcas valiosas para o brasileiro.


A SEAE, apesar de ter mais de 90% do seu corpo técnico dedicado a temas ligados ao antitruste, sempre foi responsável por inúmeros outros assuntos. Por isso, tinha que se dedicar também a dar pareceres opinativos acerca de regulações específicas em diversos setores (em especial aqueles relativos à infraestrutura), a fazer notas analíticas concernente a Projetos de Leis e outros marcos normativos, a participar em conjunto com a SAIN (Secretaria de Assuntos Internacionais) das decisões interministeriais de medidas antidumping, a ser o responsável por Loterias, dentre outras tantas coisas que surgiam, muitas delas a depender do gosto do “freguês”, leia-se, do Ministro da Fazenda da ocasião. Logo, apesar da SEAE sempre ter tido outras responsabilidades que não só o antitruste, era o antitruste o seu carro-chefe. Por isso se diz que a SEAE é mais do que uma secretaria vinculada a um certo ministério, a SEAE sempre foi e sempre será uma marca do antitruste brasileiro em termos nacional e internacional.


Com a mudança da Lei no 12.529/11, a SDE desapareceu, mas o Ministério da Justiça continuou a ser bem representado por um novo CADE, que absorveu a maioria dos competentes profissionais daquela Secretária. O Ministério da Fazenda, por sua vez, seguiu sendo bem representado pela SEAE, que passou a dotar, ao longo dos anos, de experiência única no tema, competência ímpar para lidar com advocacia da concorrência e expressivo know-how acumulado nos procedimentos, peculiaridades e idiossincrasias do antitruste brasileiro. Assim, se no novo CADE o foco passou a ser a defesa da concorrência, o da SEAE passou a ser exclusivamente o da advocacia da concorrência. Por Lei, vale dizer (art. 19, Lei 12.529/11). Mais uma vez observa-se uma desejada harmonia presente neste novo desenho, mais otimizado e racionalizado, agora entre estas duas instituições: CADE e SEAE, que, até janeiro/2018, formavam o SBDC.


Em dez/2015, quando Nelson Barbosa foi Ministro da Fazenda, cogitou-se em aniquilar a SEAE. A sorte desta Secretaria se deu pela entrada em maio/2016 de Henrique Meirelles, que desistiu da ideia. Sabe-se que o foco da nova gestão no Ministério da Fazenda é controlar o catastrófico desequilíbrio fiscal. Por isso, por uma questão conjuntural e um olhar peculiar do novo Ministro, a SEAE passou a fazer análises fiscais, deixando a advocacia da concorrência para ser tratada majoritariamente pela assessoria especial de reformas microeconômicas, com o apoio técnico dos servidores da SEAE. Em 16/janeiro/2018, contudo, a SEAE foi extinta pelo Decreto nº 9.266, tendo sido criada duas novas secretarias: a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência; e a Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loterias.


É verdade que qualquer Ministro que tome posse pode desenhar a sua agenda. Isso sempre ocorreu e sempre ocorrerá. Problemas conjunturais, destarte, devem ser tratados como temporários. Escolha dos secretários ou dos assuntos que terão prioridade são, assim, opções do “chefe da casa”, de forma a conter os assuntos que ele considera mais relevantes para o país e as pessoas mais adequadas para tocar ditos assuntos. A pauta é sempre dada pelo Ministro e, vale dizer, Meirelles fez excelentes escolhas nestes quesitos. Alterar estruturas e nomes das secretarias, por sua vez, por mais pragmáticas e acertadas que possam ser ou parecer, precisam ser analisadas em seu contexto histórico, com uma perspectiva de mais de longo prazo e certa sensibilidade. Afinal, no setor público, muitas pessoas vão e vem, mas as instituições permanecem intactas, pois pertencem ao Estado. Se dentro do Ministério da Fazenda, por exemplo, outras secretarias não têm vínculos históricos com o país acerca de algum tema em específico, a SEAE tem. E muito.


Imagina se, ao gosto de quem chega para liderar o órgão, este decide mudar nomes como Embrapa ou Embraer? Ou mesmo, imagine se um novo dono das Havaianas opta por chama-la por outro nome? Marca é, assim, um ativo importante, pois remete à uma história de construção. Marca é reputação, que toma tempo para ser criada. Apple é marca. Amazon é marca. E, como todas as marcas, elas revelam a seus consumidores um certo conjunto de valores e qualidade. No caso, os consumidores são os militantes do antitruste.


Se outrora a referência para a escolha de advogados no CADE se dava pelo Ministério da Justiça (uma vez que o CADE é uma autarquia vinculada ao MJ), para as vagas dos economistas, a indicação era sempre feita pelo Ministério da Fazenda, através da SEAE. A SEAE, desta forma, desde 1994 quando nasceu o antitruste brasileiro, sempre teve papel relevante nessa história, é conhecida e reconhecida internacionalmente e é a maior referência para os economistas que militam no antitruste brasileiro.


O SBDC, portanto, ainda tem duas marcas relevantes: a SEAE e o CADE, dado que a alteração do nome é recente. Eliminar qualquer uma delas não tem um benefício explícito e pode ser um indubitável retrocesso, uma vez que são poucas as instituições do governo brasileiro que merecem uma homenagem, são poucas que merecem ter a marca garantida. Assim, ainda que não houvera uma traição à história do antitruste – do mesmo modo como quiçá Bento Santiago não fora traído por Capitu –, teria sido melhor (em não podendo optar pelo staus quo) manter a marca SEAE e escolher um nome ligeiramente alterado (por exemplo, “secretaria da advocacia econômica da concorrência”). Afinal, a marca SEAE tem reputação, tem equipe competente, é querida por aqueles militam na área e foi erguida a base de muito trabalho por aqueles que tiveram a honra de passar por lá.


Diferentemente de Dom Casmurro, se há uma contenda sobre a traição sentida por militantes do antitruste pela extinção da marca SEAE, esta polêmica pode ser equacionada rapidamente. Basta que o Ministro da Fazenda não mude a marca SEAE (ainda que possa ter um novo nome similar ao antigo). Oxalá haja uma reconsideração pelo Ex.mo Ministro Meirelles. Se não houver, pois, é torcer para que o próximo Ministro da Fazenda seja sensível e faça esta reconsideração. Afinal, “para quê mexer em marca valiosa que está ganhando?”


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