A invisível Mileva Maric
- rafaelk2077
- 30 de nov. de 2017
- 6 min de leitura
E a invisível análise de um processo administrativo sancionador no Cade
Mileva Maric passou despercebida pela história. Foi invisível aos olhos daqueles que quisera ter tocado os corações. Lástima para a humanidade, em geral, e para as mulheres, em particular. Culpa de Albert Einstein, ainda que fosse per se uma época grotesca para mulheres brilhantes, como ela. Essas observações, vale dizer, são absolutas e não relativas.
Mileva Maric nasceu em 1875 na Sérvia. Era gênia, manca e apaixonada por física e matemática. Seu pai, único incentivador intelectual que tivera na vida, a fez estudar em colégio exclusivo para homens em Zurique, em 1894. Zombada devido a sua deficiência física, comeu o “pão que o diabo amassou” e tinha que provar diariamente o merecimento de estar em dito colégio. Todo este sofrimento a transformou em uma mulher ríspida. Ingressou na Polytechnikum de Zurique, reduto igualmente masculino, e, até então, era gladiadora incansável por um futuro profissional radiante. Seu sonho, contudo, foi arrebatado, confiscado e dilapidado por Einstein, homem intelectualmente sedutor, embora extremamente egocêntrico, que conhecera naquela universidade. Seu equívoco foi ter acreditado em Einstein, que a convencera de que ele a queria como uma parceira em todos os aspectos da vida. Mentira. Nunca a ajudou nos afazeres mundanos domésticos, nem no cuidado desgastante dos filhos. Por ele, portanto, ela não se formou. Por ele, assim, ela morreu antes mesmo de ter morrido. Uma tragédia pessoal, completamente invisível.
Apesar de controverso o papel que Mileva teve na vida intelectual de Einstein, o livro “Senhora Einstein: A história de amor por trás da Teoria da Relatividade”, de autoria de Marie Benedict, a coloca como parte central em diversas ideias ditas dele, que inclui a Teoria da Relatividade. Sem incluí-la como coautora em inúmeros artigos publicados e sem ter dado à esposa qualquer reconhecimento ao longo da vida, Einstein lhe deu (como pagamento por toda dívida intelectual) o dinheiro que ganhara do seu prêmio Nobel em 1921. Era o mínimo que poderia se esperar de alguém que a desrespeitara com tamanha crueldade, conquanto esse gesto não tenha sido espontâneo, mas fruto de uma imposição dela para conceder-lhe o divórcio. Einstein poderia ter feito como Pierre Curie, que não aceitara dito prêmio em 1903 se sua esposa, Maria Curie, não fosse igualmente laureada. Não o fez, contudo.
Assim como foram invisíveis as ideias de Mileva para o mundo, há outras pessoas e outros fatos invisíveis que precisam ser lembrados vez por outra. Um desses exemplos é o que deveria permear (estar por trás, de forma invisível) a “análise de um processo administrativo (PA) sancionador no Cade”. Há, ao menos, sete itens a considerar. São estes:
O primeiro ponto concerne ao “ônus da prova”. Conquanto o Cade disponha de poucos recursos, o “ônus da prova” é do Cade e não das Partes. Dito de outra forma, para condenar um Representado, compete ao Cade provar ou demonstrar que houve infração contra a ordem econômica e não às Partes demonstrarem que são inocentes. Na falta de provas (diretas ou indiretas) ou na inexistência de evidências econômicas calcadas em dados do caso em análise, há que sugerir pelo arquivamento com respeito aos Representados. Note que as evidências econômicas – que são mais frágeis do que provas diretas ou indiretas –, ainda que possam ser discutidas, podem ser utilizadas para condenar. O que não se pode é condenar com base em teses teóricas ou suposições meramente hipotéticas. Afinal, o Cade não é uma Universidade e analisar um PA envolve mais que um exercício acadêmico. Um processo administrativo sancionador, por sua vez, tem um rigoroso rito a ser seguido, pois trata-se de uma condenação. As teses acerca do suposto dano, destarte, devem ser devidamente demonstradas para um caso em concreto.
O segundo ponto refere-se ao princípio da “regra da razão”. Neste caso, por lógica, antes de iniciar dita análise, há que delimitar: (1) os agentes, (2) a conduta e (3) o mercado relevante sobre o qual se debruçará tal estudo. A análise pela regra da razão contrabalança o custo da conduta em relação a seus eventuais benefícios (aqueles que supostamente a conduta pode acarretar). Uma ressalva se faz apenas para os casos de hard core cartel, que, por economia processual (uma vez que nunca há benefício, segundo a teoria econômica), são analisados de forma per se. Nem mesmo o que tenho chamado de soft cartel escapa da análise pela “regra da razão”. Ou seja, a norma geral é: (1) definir os agentes econômicos envolvidos, (2) delimitar a conduta anticompetitiva, (3) determinar o mercado relevante, e (4) realizar uma análise pela regra da razão.
O terceiro ponto diz respeito à “comprovação dos efeitos”. Isto quer dizer que, ao final da análise pela regra da razão, há que estar demonstrado que houve inequívoco dano ao mercado de que trata o PA, com evidências ou provas objetivas sobre o mercado relevante do caso em tela, identificando o universo dos lesados. Mais uma vez vale dizer que, como o Cade não é Academia, não se pode deduzir que houve efeitos genéricos, com base em teorias ou em jurisprudência de outras nações, dispensando análise mais detida de dados e evidências referentes ao PA em questão. Particularizar a teoria para o caso em concreto e verificar se houve dano é essencial no âmbito de um PA sancionador no Cade, principalmente no caso de uma condenação. Sem a demonstração dos efeitos anticompetitivos específicos do PA em questão, os Representados não poderão ser condenados, pois se estaria violando os artigos 2o e 36o da Lei 12.529/11.
O quarto ponto diz respeito aos “efeitos potenciais da conduta”. A análise pelo prisma da “potencialidade dos efeitos” não pode se vulgarizar e ser tratada como regra geral. A potencialidade, mormente, é vista com mais ênfase em análises de Atos de Concentração (ACs) e não de PAs, pois ACs requerem análises prospectivas, o que não é verdade na grande maioria dos casos de PA. Em sede de PA, observa-se condutas que ocorreram e findaram no passado. Desta forma, o Cade, ex-post, tem condições de fazer uma análise “privilegiada” acerca dos fatos que ocorreram, podendo verificar se houve dano e fazer uso, para isso, das especificidades do PA em questão. No caso Gemini (PA no 08012.011881/2007-41, no SEI 0281728), por exemplo, o Cade, por maioria, condenou os Representados por uma suposta “potencialidade” de dano, ao meu ver, não comprovada com números e fatos objetivos do caso, ainda que o PA tivesse tomado 10 anos para ser julgado. Falou-se em “prejuízo” para a denunciante, sem ao menos apresentar seus balanços, informações de lucro, participação de mercado, ou qualquer outra variável que pudesse indicar que, de fato, a denunciante sofreu danos concretos.
O quinto ponto trata sobre a “definição do mercado relevante”. Muito embora esteja sedimentado no Guia H que em ACs se tenha que definir o mercado relevante sobre o qual deve se debruçar a análise antitruste, o mesmo vale para casos de PA. Quando se trata de um processo administrativo sancionador, se não estiverem bem especificados (1) a conduta, (2) os agentes econômicos e (3) o mercado relevante, como será realizada uma análise pela regra da razão, sem cometer o erro de estar realizando um “exercício acadêmico” e não uma análise antitruste sobre o PA em tela?
O sexto ponto diz respeito às análises de “possibilidade e probabilidade do exercício do poder de mercado”. Dando prosseguimento ao item anterior, sem a definição do mercado relevante, não é possível realizar uma análise de possibilidade e, muito menos, de probabilidade do exercício de poder de mercado. E, conquanto o mercado esteja bem definido, ainda assim, há que analisar com rigor o que “manda o figurino antitruste clássico”, especialmente quando o conjunto probatório da conduta não for robusto; ou quando se tratar de “efeitos em potencial”. No tocante à possibilidade do exercício do poder de mercado, ainda que a análise de market share seja aquela feita em 99% dos casos, há 1% (ou seja, poucos) em que se pode mensurar de outras formas. Foi o caso do “cartel promovido pela ACTA e pelo SINDGRAN” no porto de Santos, PA de minha relatoria (PA nº 08012.000504/2005-15, no SEI 0293632), em que a possibilidade do exercício do poder de mercado dizia respeito ao fato dos dois Representados terem o direito de uso, na ocasião, de terreno estratégico sem a posse do qual não teria acarretado a conduta anticompetitiva (isto é, a probabilidade do exercício do poder de mercado seria zero!).
O sétimo item concerne à análise de eficiências, que, na maioria dos casos em PA, trata dos efeitos relativos ao poder compensatório. Como se trata de uma análise pela regra da razão, este item se torna imprescindível.
Em suma, há pessoas e fatos que – por serem invisíveis – a sociedade esquece que existem ou que existiram. Assim como é importante lembrar da contundente presença de Mileva Maric para a humanidade (dada a importância revolucionária das teorias de Einstein e dada a incerteza de quanto ela contribuiu para o desenvolvimento de ditas teses), vale recordar o que permeia (ou o que está por trás, de forma invisível) a análise de um “processo administrativo sancionador”, com especial atenção ao Cade, pois trata-se de um Tribunal que, diferentemente de tantos outros, respira o law and economics.
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