A Reforma Tributária, o crédito vinculado ao pagamento e as formas de pagamento: uma revolução no status quo
- Cris Schmidt
- 16 de set. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 11 de ago.
A Reforma Tributária do Consumo (RTC) – EC132/23, PLP68/24 e PLP108/24 – tem sido tema de discussões acaloradas, muitas delas tecnicamente ricas, contribuindo para o aprimoramento das leis complementares, hoje tramitando no Congresso Nacional. No meio de altesrações questionáveis destas regulamentações, houve também críticas apolíticas e construtivas. Foi o caso, por exemplo, das alterações no PLP 68 com relação aos textos acerca do crédito vinculado ao pagamento e do split payment.
No Brasil a sonegação é expressiva. Isso resulta em competição desleal entre aqueles que pagam corretamente seus impostos vis-à-vis os sonegadores e cria um problema para os fiscos. Não raras vezes os tesouros acabam devolvendo crédito fictícios a contribuintes, o que resulta em “furo” nos caixas dos entes e, logo, falta de recurso para pagar a quem de fato tem direito a recebê-lo. Fazer a vinculação da devolução dos créditos àqueles que têm direito a recebê-los, em decorrência do pagamento do tributo ao sujeito ativo (fisco) é, assim, uma evolução legal sem precedentes na legislação tributária, sendo um poderoso desestímulo à indústria de “notas frias”.
Antes de adentrar no assunto especificamente, é importante entender a nãocumulatividade, um dos princípios centrais da RTC2. Imagine 3 empresas: A vende para B, que vende para C, que vende para o Consumidor Final (CF). Com isso, temos: A, que fornece para B, recebe de B o valor da mercadoria X1 mais o tributo desta operação, digamos $AB. A recolhe o imposto recebido de B. Em seguida, B passa a ter direito a um crédito de $AB. B, que fornece para C, recebe de C o valor da mercadoria X2 mais o tributo desta operação, digamos $BC. B recolhe o imposto recebido de C e deduz do crédito $AB. Na sequência, C passa a ter direito a um crédito de $BC. C vende ao CF, que paga o valor da mercadoria X3 mais o tributo da operação, digamos $CCf, que chega ao fisco pelo recolhimento de C, deduzido do crédito $BC. Como C faz uma operação B2C, o CF não tem direito ao crédito ($CCf), sendo ele quem paga integralmente o tributo. Note, assim, que nas duas operações B2B o pagamento dos tributos ($AB e $BC) foi devolvido em formato de crédito e nada ficou para o fisco. Ou seja, o imposto pago em cada operação é recuperado pelas empresas à medida que os bens e serviços (B&S) fluem para a fase final da cadeia produtiva, no consumo, onde o imposto é integralmente pago aos cofres públicos. É por isso que há uma completa desoneração na cadeia produtiva, sendo o IVA um imposto sobre o consumo (pago no destino).
No sistema do IVA proposto, os contribuintes e os fiscos (Comitê Gestor, CG, e Receita Federal do Brasil, RFB) terão uma conta corrente tributária em uma plataforma de dados de âmbito nacional, gerenciada pelo CG e RFB, onde ocorrerá a compensação de débito (do sujeito passivo, como o fornecedor) e de crédito (do adquirente), de forma cronológica e automática, de tal forma que, na data do vencimento do tributo apurado, haverá a cobrança sobre o saldo devedor. Caso haja mais crédito do que débito,a empresa recebe a diferença credora do fisco. Este é a metodologia de funcionamento de qualquer IVA.
O tributo chegará ao fisco basicamente por quatro formas. Pelo pagamento 1) do saldo devedor pelo fornecedor, 2) do imposto da operação pelo adquirente, 3) do imposto da operação pela instituição financeira, via split payment, ou, 4) do imposto da operação por uma terceira parte, denominada de responsável tributário3
O pagamento do saldo devedor pelo fornecedor é a modalidade clássica (a mesma do ICMS). A inovação prevista no PLP68 é que somente os tributos efetivamente pagos ao fisco entrarão na coluna dos créditos na apuração. Isto representa uma quitação diária do saldo devedor pelo mecanismo da compensação (instantânea), onde débitos e créditos serão computados em ordem cronológica. Assim, o resíduo a ser pago, que ainda não tiver sido compensado (pago) pelo sistema, gerará um saldo devedor na conta corrente tributária do fornecedor (sujeito passivo). Quando o fornecedor pagar este resíduo (saldo devedor), o sistema habilitará os débitos ainda não compensados do fornecedor a se tornarem créditos para o seu cliente (adquirente). Se, contudo, o fornecedor não pagar esse saldo, o adquirente não terá direito a estes créditos. Esta forma de pagamento, portanto, pode gerar um inconveniente para o adquirente, uma vez que, em regime de crédito vinculado ao pagamento, ele pode não ter o seu crédito garantido. Neste caso, outras modalidades de pagamentos podem garantir o direito ao crédito, como se pode ver nas próximas duas modalidades de pagamento a seguir.
O pagamento do tributo pode ser feito pelo adquirente. Esta foi outra inovação incorporada ao PLP68, que decorreu de críticas da forma de pagamento anterior. Neste caso, o adquirente pagará o valor do B&S ao fornecedor e, separadamente, o valor do tributo ao fisco. Ele pode efetuar o pagamento por qualquer meio, tal como TED, guia avulsa, pix com leitura de código QR impresso no documento fiscal etc. O adquirente, deste modo, passa a ter a garantia de que haverá um crédito na sua conta no mesmo valor do tributo que ele pagou, independentemente de o fornecedor pagar ou não o seu saldo devedor. Cabe ressaltar que, mesmo que o adquirente opte por esta forma de pagamento, a instituição financeira consultará a plataforma do CG e RFB para verificar se os tributos já foram pagos, seja por compensação diária via sistema, seja pelo pagamento do saldo devedor por parte do fornecedor4. Se uma destas duas formas tiver ocorrido, os tributos serão restituídos ao fornecedor em até três dias úteis, evitando pagamento duplicado (o que se chama de bis in idem do tributo).
O pagamento do tributo pode ser feito por split payment, método inovador e que só pode ocorrer por via eletrônica. Neste caso, o pagamento do documento fiscal eletrônico5 pelo adquirente é feito à instituição financeira, que, por sua vez, fará uma divisão do valor pago da seguinte maneira: uma parte (valor do B&S) é encaminhada para a conta do fornecedor e a outra (valor do IVA, no caso, IBS e CBS), para a conta dos fiscos (CG e RFB). Como na forma de pagamento anterior, o adquirente terá a garantia de que haverá um crédito na sua conta corrente tributária no mesmo valor do tributo que ele pagou. A diferença desta forma com a maneira anterior é que esta é mais conveniente para o adquirente, pois basta ele efetuar um pagamento no banco, que este se encarrega de dividir os valores. Como se trata de um aprimoramento com relação ao pagamento do saldo devedor pelo fornecedor, se o adquirente optar pelo pagamento por via eletrônica, o split payment será o método obrigatório. Assim como no modelo anterior, portanto, a checagem pela instituição junto à plataforma se os tributos já foram pagos também ocorrerá. Analogamente, se for o caso, os tributos serão restituídos ao fornecedor em até três dias úteis ou imediatamente conforme configuração dos sistemas do fisco e da rede recebedora.
O pagamento do tributo pode ainda ser feito por responsabilidade a terceiros vinculados ao fato gerador da operação em relação aos tributos do sujeito passivo. É o caso das cooperativas que são as responsáveis pelo pagamento dos tributos de seus cooperados. Neste caso, o pagamento pode ficar vinculado à cada operação por meio de guia avulsa ou pix com QR code impresso no documento ou, ainda, pelo sistema de compensação na conta corrente tributária do responsável.
Todas estas formas foram criadas visando: 1) facilitar a vida do bom contribuinte, pela agilidade e conveniência e para zelar pela concorrência leal; e 2) garantir à administração tributária que o tributo será pago para não gerar crédito sem haver ocorrido o pagamento do tributo. Isso elimina problemas, tais como: fraudes estruturadas (envolvendo notas frias de empresas noteiras e de alaranjamentos), inadimplências contumazes, cobranças administrativas e judiciais impraticáveis, necessidade de controles por meio de obrigações acessórias, e maiores custos de conformidade e administrativos. Se o crédito não for associado ao pagamento, o Estado poderia restituir um crédito que não recebeu. De onde sairia o recurso para tal crédito? Provavelmente com aumento de alíquotas ou do endividamento, beneficiando sonegadores e prejudicando a concorrência.
Há duas críticas que têm sido recorrentes e cabe esclarecê-las. A primeira crítica se refere ao fato de que, como o crédito está vinculado ao pagamento do tributo, o adquirente teria que fiscalizar se o fornecedor pagou o imposto. Essa questão foi sanada ao incluir no PLP68 duas medidas. A primeira, como dito anteriormente, concerne à introdução das duas novas modalidades de pagamento, o split payment e o pagamento pelo adquirente diretamente ao fisco. A segunda, foi a construção de uma inovadora integração entre o sistema dos prestadores de serviços de pagamentos e o sistema de registro e controle dos documentos fiscais eletrônicos gerenciado pelo fisco, como será explicado a seguir. A ver.
No caso do split payment, será efetuado na liquidação financeira da operação e, se os tributos ainda não tiverem sido pagos, o CG e a RFB quitará os tributos IBS e CBS e os créditos respectivos entrarão on line, na apuração do adquirente que poderá acompanhála remotamente e efetuar ajustes (p.e., estorno de créditos de uso e consumo pessoal), se necessário for, e, ao final do período, assiná-la eletronicamente e transmiti-la ao CG/RFB. Portanto, é o próprio sistema que acusará quando houver incongruência e a fiscalização sobre a condição do crédito caberá, como sempre, ao fisco, que os disponibilizará à apuração depois de fiscalizados eletronicamente pelo processamento do seu pagamento.
A segunda crítica diz respeito ao fato do modelo de split payment adotado por alguns países europeus não ter dado certo, resultando em acúmulo de crédito. Cabe observar que estes diferem do modelo proposto para o Brasil, por três razões. Primeiro, porque eles não possuem a institucionalidade necessária, com a existência de um órgão coordenador (CG), que gerenciará centralizadamente, em conjunto com a RFB, todo o processo, desde a emissão do documento fiscal eletrônico até o registro do pagamento dos tributos nele consignados na apuração da empresa. Segundo, porque eles tampouco têm o mesmo grau de evolução tecnológica, tanto com relação aos documentos fiscais eletrônicos quanto com respeito ao sistema financeiro. Terceiro, porque eles não têm uma plataforma nacional de dados com dois sistemas integrados de pagamentos e de documentos fiscais, com apuração centralizada, por CNPJ e on line, que permite o rastreamento da operação, do pagamento do tributo e da devolução do crédito. O paralelo com o modelo europeu, consequentemente, é impossível de ser feito.
Vale ainda dizer que o PLP 68/2024, em seu art. 53, cria mais uma inovação para facilitar a vida do contribuinte, depois de críticas do setor. É o caso do procedimento opcional do split payment simplificado para empresas varejistas, sendo outro retoque legislativo, dando maior racionalidade para os negócios que tenham um número elevado de pequenas operações, mas que, em termos agregados, representam valores elevados. Neste caso, o banco efetua o split payment com base em um percentual fixo sobre os valores diários faturados pela empresa e, no final do período de apuração, o fisco faz o ajuste com base nos documentos fiscais de compras e de vendas do varejista, devolvendo o valor a maior quando for o caso. A diferença a menor, será cobrada automaticamente do sujeito passivo em sua apuração.
Por fim, importante mencionar que, durante o período de transição, entre 2027 e 2032, o split payment será adotado de forma escalonada, mas, a partir de 2033, este deverá ser obrigatório para as transações em meios digitais, que compõem a maior parte do sistema de liquidação financeira das operações comerciais, desburocratizado o pagamento do IVA por parte das empresas e diminuindo as fraudes e as inadimplências planejadas. Bom para o Brasil, que terá as empresas mais focadas em gerar emprego e renda e o fisco, com mais tempo para fiscalizar de forma mais inteligente e evitar a concorrência desleal.
Em suma, o processo de debates da Reforma Tributária do Consumo na Câmara gerou melhoras no texto (PLP68) em pontos nevrálgicos do funcionamento do IVA, que tramita, agora, no Senado. A crítica da “falta de debate”, portanto, é questionável. De fato, o sistema de vinculação do crédito ao seu efetivo pagamento e a forma de pagamento do split payment são inéditas, necessárias, incomparáveis com outros modelos e tiveram aprimoramentos relevantes pelos parlamentares. Oxalá o Senado seja célere na sua avaliação e que o PLP68 seja aprovado no Congresso Nacional até dez./2024.
1Ângelo de Angelis é auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo, pesquisador no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV, mestre em economia pela Unicamp e diretor técnico da Associação dos Auditores Fiscais do Estado de São Paulo. Cristiane A. J. Schmidt é doutora pela EPGE/FGV e Presidente da MSGás, tendo sido Secretária de Fazenda, Orçamento e Planejamento de Goiás, Conselheira do CADE e SecretáriaAdjunta da SEAE do Ministério da Fazenda. 2Aqui há uma explicação detalhada sobre a não cumulatividade: “A PEC 45 e o funcionamento do IVA”, de Cristiane A. J. Schmidt, JOTA, 12/09/2023. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheresna-regulacao/a-pec-45-e-o-funcionamento-do-iva-12092023.
3Segundo o PLP 68/2024, art. 27 caput, incisos I ao V e parag. único, essas modalidades representam meios de extinção do crédito tributário e a elas se soma mais uma que é a compensação de débitos por créditos já pagos, o que leva a apuração saldo devedor ou credor. O PLP 68/2024 está disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2414157&filename=PLP%2068/2024. Além destas, ainda há um regime simplificado de split payment para empresas que têm como clientes não contribuintes, normalmente as varejistas (art. 53 do PLPL 68/2024), como supermercados. 4Para preservar o sigilo fiscal, essa consulta é feita por uma campo-chave do documento fiscal eletrônico que ficará vinculado ao respectivo meio de pagamento (duplicata, boleto, TED, dédito em conta, pix ou outro). 5Usa-se a expressão “documento fiscal eletrônico” ao invés de “nota fiscal eletrônica”, porque a primeira engloba diversas modalidades de “nota fiscal eletrônica” em vigor: Nota Fiscal Eletrônica, modelo 55, Nota Fiscal de Serviços Eletrônica, Nota Fiscal de Consumidor Eletrônica, Nota Fiscal de Energia Elétrica Eletrônica, Nota Fiscal Fatura de Serviço de Comunicação Eletrônica, Conhecimento de Transporte Eletrônico e Bilhete de Passagem Eletrônico.
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