Sem ser a ideal, reforma tributária trará ‘luz no fim do túnel’, diz Schmidt
- Cris Schmidt
- 29 de dez. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 11 de ago.
Consultora vê avanços no texto promulgado, espera ganho de produtividade após transição, mas classifica manutenção de ‘privilégios’, alguns deles ‘inconcebíves’
A reforma tributária sobre consumo ideal teria apenas três páginas, com as premissas básicas do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Em busca da reforma politicamente possível, a emenda promulgada ficou com 74 páginas e estabeleceu “privilégios”, mas trará “uma luz no fim do túnel” e um sistema “muitíssimo melhor do que o atual”. Com um sistema no qual funcione um IVA com crédito financeiro, base ampla e cobrado no destino, “não há como não gerar maior produtividade e maior crescimento econômico”.
Essa é a avaliação da consultora Cristiane Schmidt, ex-secretária de Fazenda, Planejamento e Orçamento de Goiás. Ela destaca que a reforma manteve privilégios, “alguns inconcebíveis”, como o do regime tributário automotivo de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, cuja vigência ficou garantida até 2032, e perdeu-se também oportunidade de aprovar uma reforma com maior justiça social.
Promulgada no dia 20, a Emenda Constitucional 132/2023 estabelece um sistema no qual serão extintos o ICMS estadual, o ISS municipal e os federais PIS e Cofins, além do IPI, na forma como existe hoje. O IVA será dual, com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), a ser arrecadado pela União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), administrado conjuntamente por Estados e municípios. Será instituído também o Imposto Seletivo (IS), sobre bens e serviços com externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente.
O texto promulgado Schmidt, ficou “melhor” do que a reforma votada no Senado. Além de eliminar alguns dos chamados tratamentos específicos, como para saneamento e concessões de rodovias, houve também melhora na redação da emenda, aponta. Ela destaca a retirada da expressão “extrafiscal” para o IS, o que pode contribuir para evitar litígios à frente.
Para ela, com o crédito financeiro do IVA garantido na Constituição e um sistema tecnológico que já está em construção, será possível amarrar o pagamento do imposto ao creditamento e haverá estímulo à formalização. O comitê gestor, avalia, deverá ter papel meramente administrativo, com operação regulada por lei complementar. A seguir os principais pontos da entrevista.
Politicamente possível
Às vezes é melhor não aprovar nada do que aprovar o politicamente possível. Mas no caso da reforma tributária, mesmo sendo a politicamente viável, haverá ganho. Teremos um sistema muitíssimo melhor que o atual. Houve muitos privilégios, mas ficamos com o esqueleto básico de um IVA no destino, de base ampla, que vai possibilitar o uso de todos os créditos. A complexidade aumentará um pouco porque de 2026 a 2032 teremos dois regimes ao mesmo tempo. Com um IVA funcionando não tem como não gerar maior produtividade e maior crescimento econômico.
Tecnologia a favor
Já temos um sistema de notas fiscais eletrônicas muito avançado e agora avançaremos mais. Vamos entrar com a tecnologia do blockchain, dos contratos inteligentes, que irá amarrar o pagamento do imposto ao crédito. Já temos um sistema eletrônico de alto nível nos Estados e grandes capitais e é preciso fazer também para municípios menores, porque há prefeituras que não têm nem administração tributária. O comitê gestor deve unificar esses processos e procedimentos. Isso será um ganho para o Brasil e irá estimular a formalização de empresas. Temos a tecnologia, é preciso criar o sistema.
Créditos do IVA
Nos tribunais administrativos estaduais uma das principais causas de contencioso é a disputa de ICMS com ISS, se algo é bem ou serviço. A outra é se há direito a crédito ou não. Porque a base não é ampla, e o cálculo é confuso, não é crédito financeiro. Agora teremos agilidade na devolução de créditos, o contencioso e as obrigações acessórias vão diminuir. Está estabelecida a base plena e está claro que o tributo será cobrado no destino. Duvido que a lei complementar pode gerar algum outro tipo de interpretação. A Constituição está acima. A lei vai apenas regulamentar. A única questão que pode causar pequena confusão e contencioso é a parte do texto que coloca o consumo pessoal como exceção.
Comitê gestor 1
Entre as mudanças no texto final, está a exclusão da participação dos tribunais de contas no comitê gestor. Outra mudança foi a retirada da previsão de que o nome do presidente do conselho teria que ser aprovado por maioria absoluta no Senado. Agora a exigência é de notório saber em administração tributária. O critério populacional para a representatividade no comitê foi mantido e é importante porque é reflexo de onde estão as pessoas. Mas esse não pode ser o único critério porque os entes menores têm também suas prerrogativas. Numa analogia, dentro do Mercosul o Brasil é o país que tem a maior população, mas nem por isso os critérios de votação dão maior ênfase ao Brasil.
"Às vezes é melhor não aprovar nada que aprovar o politicamente possível. Na reforma tributária, mesmo sendo politicamente viável, haverá ganho"
Comitê gestor 2
O comitê gestor não tem nada a ver com a retirada de poderes de governadores e prefeitos. O comitê não tem nem a prerrogativa de propor uma lei complementar, não tem poder de fazer política. Quem faz política tributária são os governadores e prefeitos, que vão escolher suas alíquotas quando acabar a transição para o IBS. E também a União, no caso da CBS. O comitê gestor será mero centro administrativo que vai regular como é que vai se dar o dia a dia, como serão as obrigações acessórias, como vão atuar auditores, quais serão regras do contencioso administrativo. O comitê gestor precisará ter uma relação com a Receita Federal muito próxima porque a CBS e o IBS terão a mesma base.
Cesta básica
No texto final da reforma voltou a cesta básica nacional e caiu a chamada cesta básica estendida. Por um lado você diminui a complexidade porque agora você tem uma única cesta nacional, mas creio que a ideia anterior era ter uma cesta básica para todo o país, pequena, com 30 a 35 itens, e a estendida ia dar direito ao cashback. Isso poderia introduzir a cultura do cashback na cesta básica, estimularia o consumidor a pedir nota fiscal e haveria maior conscientização sobre o imposto. Também estimularia a formalização dos estabelecimentos. Isso ainda pode ser construído na lei complementar.
Exceções 1
Houve melhora substantiva das exceções no texto final em relação ao que saiu do Senado. Houve supressão de alguns regimes específicos, como para saneamento e concessões de rodovia, para disponibilização de estrutura compartilhada de serviços de telecom, para bens e serviços que promovam a economia circular e para operações com micro e minigeração distribuídas de energia elétrica. Foi mantido o transporte coletivo, que é subsidiado em vários lugares do mundo, porque é uma externalidade positiva para a sociedade. Se for bem feito, contribui para tirar carros da rua, diminuindo congestionamento e a poluição. As supressões foram relevantes, porque diminuem a complexidade e possíveis contenciosos.
Exceções 2
Nos regimes favorecidos, entre as mudanças interessantes está o dispositivo que mencionava o hidrogênio verdade, agora ampliado para bens e serviços com baixa emissão de carbono. E no regime favorecido do transporte aéreo a redação falava em alíquota menor para aviação regional. Isso foi retirado. É positivo.
Exceções 3
Nos regimes diferenciados, nos quais há redução de 100%, 60% ou 30% do IVA, não houve mudanças. O ideal teria sido não ter nenhuma exceção. A melhor PEC teria sido uma de três páginas, que traria o esqueleto do IVA, de base ampla, com crédito financeiro, cobrado no destino. Mas para viabilizar essa reforma tributária discutida há mais de 30 anos, a PEC ficou com 74 páginas e precisou colocar exceções como a Zona Franca de Manaus e o Simples. Por que profissional liberal vai ter exceção? Não faz sentido. O que vai entrar em educação e saúde? A depender do que vai entrar só rico que vai se beneficiar. Poderíamos ter uma reforma muito mais justa, se tivéssemos onerado tudo e dado o cashback para saneamento, energia elétrica, gás de cozinha, cesta básica e itens para garantir a dignidade menstrual. Perdemos a oportunidade de uma reforma com maior justiça social. A reforma manteve privilégios, alguns inconcebíveis, como o do regime automotivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, cuja vigência ficou garantida até 2032.
Alíquota do IVA
Obviamente seria muito melhor uma alíquota única e baixa, de 19% a 21%, do que uma alíquota de 27% ou mais e com várias exceções que não são boas. Hoje, há confusão tributária tão grande que não se sabe como será dada a diminuição do custo de compliance. E a alíquota também depende da redução da sonegação, da judicialização fiscal e da inadimplência.
Texto melhor
O texto final ficou melhor em relação ao do Senado, inclusive em termos de redação. Um exemplo positivo, é a retirada da expressão “regras comuns”, em referência ao IBS e CBS, para colocar as “mesmas regras”. Pode parecer a mesma coisa, mas no jargão jurídico pode surgir uma interpretação diferente. Outra coisa interessante foi a supressão da expressão “extrafiscal” para o IS. Isso poderia dar margem à alegação de que alguma medida com esse tributo tem caráter arrecadatório e não extrafiscal, o que motivaria discussão judicial.
ICMS modal
Caiu a parte do texto que usava a arrecadação de ICMS entre 2024 e 2028 como um dos critérios para estabelecer a destinação da receita do IBS. Assim, essa justificativa não vale mais para o aumento da alíquota modal do ICMS. Mas as elevações do imposto também tiveram a justificativa das Lei Complementares 192 e 194/2019, que impuseram restrições de alíquotas ao ICMS e fizeram a arrecadação estadual tombar.
Zona Franca de Manaus
No texto final se retira a Cide como instrumento para equacionar a entrada do IVA para a Zona Franca de Manaus e no lugar dele entra algo como um IPI da Zona Franca. O mérito continua sendo igual porque você quer proteger a produção da Zona Franca. Isso tudo vai ser regulamentado na lei complementar e é preciso que seja feito de forma transparente. Uma mudança importante é que na redação anterior estava estabelecido que a arrecadação da Cide ficaria com o Estado do Amazonas. A do IPI, na versão final, vai para a União e deverá ser repartida com Estados e municípios via FPE e FPM.
Revisão de benefícios
Já no Senado foi colocado um dispositivo no texto que prevê uma revisão quinquenal de benefícios tributários por lei, destaca. Há interpretações amplas sobre isso, mas esse dispositivo está no artigo nono, que trata dos regimes diferenciados, e diz que se refere apenas aos regimes do mesmo artigo nono. Ou seja, dos casos em que há a redução de alíquota de 30%, 60% e 100%. Não creio que isso vale nem para regimes favorecidos, nem para regimes específicos ou para Zona Franca. Nem a cesta básica seria atingida, porque está no artigo oitavo.
Transição
Alguns especialistas defendem uma reforma com transição mais rápida. Não dá para fazer isso. Creio que houve prudência. Infelizmente o período de transição, tem que ir até 2032. Talvez, no futuro, seja possível dar maior velocidade, com maior entrada do IBS no decorrer do período.
Encargos para União
A responsabilidade social vem com responsabilidade fiscal. Manter as contas em dia não é um fim em si mesmo, é um meio para fazer políticas públicas Schmidt. Hoje temos cerca de R$ 140 bilhões a R$ 210 bilhões em despesas discricionárias, o que é muito pouco e deixa qualquer governo de mãos atadas. Depois de 2043 haverá uma conta “ad infinitum” de pelos menos R$ 60 bilhões anuais. Sem entrar no mérito das questões todas ou da discussão de valores, falo do ponto de vista apenas fiscalista. Era pertinente que colocassem uma fonte de financiamento para isso.
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