Grande Cade: veredas; todo um caminho a trilhar
- Cris Schmidt
- 10 de out.
- 9 min de leitura
Original em: https://go.fgv.br/mY2DTCPpl7T
O título remete ao livro de Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas. Assim como Riobaldo, que nasce em um ambiente árido e complexo, se torna jagunço, vive as disputas do sertão e, em meio a dilemas morais sobre o certo e o errado, descobre que há bons caminhos (escolhas) a serem trilhados; o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que iniciou a sua história em 1994 (conquanto tenha sido criado em 1962) em um contexto de pós-intervenção estatal, marcado pela fixação de tabelas de preços pela Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), soube optar por avenidas com sabedoria. Quais seriam as outras veredas de aperfeiçoamento?
Há algumas, mas cito apenas três tópicos, passíveis de ricas querelas. Tomara! Um destes, debati no 31° Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos e Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), ocorrido de 1 a 3 de outubro, que concerne à parametrização da jurisprudência de decisões do Cade sobre “indução à conduta uniforme, para além das tabelas de preços”. Ademais deste assunto, trato de mais dois: da Resolução 17 de 2016 (acordos associativos), e da relação do Cade com os subnacionais.
No tocante ao primeiro item, toma-se como base o voto do conselheiro Andrade1 sobre o caso Creci-GO. Não tratei do mérito do voto, mas da sua proposta em criar padrões heurísticos com relação às decisões do Cade sobre os casos de indução à conduta comercial uniforme, em geral realizada por tabelas de preços desenhadas por associações, federações e conselhos. Sua intenção, muito nobre, foi propor uma maneira de reduzir o tempo de análise do Cade sobre esta matéria, dado que tempestividade importa. Seguem reflexões para o início de um profícuo debate.
A primeira observação é que o ideal seria retirar a palavra “comercial”. Como não é possível, pois ela consta da lei e demandaria alteração legislativa, entendo que o Cade deveria interpretá-la para além do binômio preço/quantidade. Explico. Às vezes, uma conduta uniforme tem resultados anticompetitivos por diversas à imposição de preço/ quantidade. Um exemplo diz respeito à moratória da soja,2 em que houve um compromisso voluntário da indústria da soja com a permissão do próprio Estado (MMA e Ibama) em não comprar dita commodity de produtores que plantam em área desmatada. Outros exemplos têm a ver com a Revolução Industrial 4.0, em que há serviços, como o ofertado pelo Facebook, no qual o poder de mercado é obtido pela “capacidade em capturar dados” e não pelo “preço”, que pode ser zero. O mundo mudou muito e as leis – ou a interpretação das mesmas – precisam acompanhar esse processo.
A segunda diz respeito à digressão sobre “regra per se x regra da razão” (paradigma americano) e “ilícitos por objeto x por efeitos” (modelo europeu). Do ponto de vista da análise econômica do direito (AED) e da teoria economia, a única conduta que, de forma incontroversa, não gera efeitos positivos é o cartel. Até mesmo discriminar preços pode gerar resultados (efeitos) alocativos satisfatórios, ainda que a distribuição dos ganhos possa gerar contendas. É o caso da discriminação de preços de 1o grau: o resultado primeiro melhor ocorre, mas há extração do excedente do consumidor.
Por sua vez, segundo o artigo 36 da Lei no 12.529/2011, uma conduta para ser anticompetitiva precisa produzir efeitos à sociedade, ainda que potenciais. Ao unir a teoria econômica com os ditames legais, portanto, conclui-se que cartel é a única conduta que, por simplificação lógica (dado que não há efeitos positivos), dispensa medição de seus efeitos.3 É, pois, uma exceção à regra geral.
O mundo mudou muito e as leis – ou a interpretação das mesmas – precisam acompanhar esse processo
Dito isso, como terceira observação, novamente sob a perspectiva da AED e da teoria econômica, uma vez o Cade tendo provado a conduta de cartel (não há inversão do ônus da prova) e tendo demonstrado o poder de mercado dos envolvidos (também não há inversão do ônus da prova), dentro de um mercado relevante devidamente bem descrito, a análise dos efeitos (também de responsabilidade da autoridade) é dispensada. Não por uma obrigação legal, mas à luz da AED.
Caberia a inversão do ônus da prova quando a análise dos efeitos fosse dispensada, o que ocorreria após o julgamento do Cade? Entendo que não. Primeiro e mais relevante, porque, considerando que toda a análise prévia foi bem embasada, trata-se de um caso com efeitos negativos. Segundo, porque o caso já teria sido julgado. Não caberia ao denunciado, portanto, provar que não houve efeitos, se ele tem poder de mercado e se ele teve uma conduta semelhante à de cartel. É um caso em que não cabe inversão do ônus da prova, por não se tratar de uma presunção iuris tantun, isto é, de uma presunção relativa, em que se admitiria a prova em contrário. Diversamente, esta seria uma presunção iuris et de iure (absoluta), em que não se admite questionamento.
Em suma, assim, pode-se dizer que, para qualquer processo administrativo (PA), por regra geral, é o Cade que deve: 1) provar a existência da conduta; 2) definir o mercado relevante; 3) demonstrar o poder de mercado naquele mercado relevante e 4) analisar os custos e benefícios (regra da razão ou seus efeitos) da conduta, ainda que potenciais.4 Se o PA for relativo a um cartel, em particular, a única modificação concerne ao item 4, que dispensa a análise dos efeitos.
Como quarta observação, cabe registrar a importância de ser demonstrado pelo órgão antitruste o poder de mercado dos acusados envolvidos no caso (os representados no PA), pois sem poder de mercado, não há como exercer abusivamente a sua posição dominante.5 É, de certa forma, uma tradução do §2o do artigo 36 da Lei no 12.529/2011,6 que retrata a análise da possibilidade do exercício do poder de mercado (unilateral e coordenado), indicada no Guia H.7 Isto quer dizer que o gráfico 3/p. 22 do mencionado voto talvez possa ser aperfeiçoado retirando os quadrantes 1 e 2 do “teste lógico/regra de julgamento”, pois estes se referem a situações em que o poder de mercado dos supostos infratores é baixo ou inexistente, logo, a regra de julgamento é pelo arquivamento do PA. Esse raciocínio, cabe observar, vale mesmo quando se faz uma análise de “poder compensatório” no âmbito de um PA específico, pois, sendo um caso concreto, o Cade precisa verificar se os acusados têm a potencialidade e a probabilidade de exercerem seu poder de mercado.
A quinta observação concerne ao fato de que – ainda que a Lei no 12.529/2011 mencione “por objeto” e não “regra per se” – por uma simplificação e influência americana, muitos votos no Cade (que incluem os meus) usaram as duas expressões como sinônimos.8 Concordo com o conselheiro9 que seria melhor se expressar “por efeitos”, porque a nossa lei assim se refere. O fato, contudo, é que, creio não haver diferença prática em usar a terminologia “por efeitos” – que, no regime europeu, evoca punir pela finalidade do ato – ou usar a nomenclatura “per se” – que evoca punir pelo ato em si. O importante, entendo, é que os passos 1 a 4 descritos acima sejam seguidos com rijeza.
A sexta observação, refere-se à análise de fixação de tabela de preços. Se quem fixa tem poder de mercado e a faz de forma obrigatória, o Cade já tem jurisprudência sedimentada para considerar um caso similar aos efeitos negativos do cartel, o que traduz em uma análise por objeto ou per se. Se não for impositiva, por sua vez, uma análise por efeitos (ou pela regra da razão) deve ser feita. Por fim, a sétima e última observação é lembrar uma bandeira que carrego desde sempre nos inúmeros votos que elaborei:10 se o objetivo do órgão antitruste é dissuadir a conduta anticompetitiva, é imprescindível que a sanção pecuniária seja dissuasória. Isto quer dizer que esta precisa ter valor maior ou igual à vantagem auferida pelos autores ao cometer a conduta anticompetitiva. Afinal, ao cometer uma ilicitude, como lembra o economista Gary Becker, falecido em 2014, há a probabilidade de o Estado não “pegá-lo”; se pegá-lo, há o tempo da burocracia em analisar o caso (que pode tomar 20 anos); depois da análise, há a probabilidade de o infrator não ser condenado; e, se condenado, há a probabilidade de ter multa abaixo da sua vantagem auferida na conduta anticompetitiva cometida. Como, em geral, as sanções pecuniárias são menores do que o ganho do infrator, especialmente quando se trata de associação, federação etc.,11 ainda que muito meritória a elaboração de uma padronização para agilizar as decisões do Cade sugerida pelo conselheiro Diogo, infelizmente a reincidência, parece, seguirá elevada, simplesmente porque, do ponto de vista do infrator, vale correr o risco e cometer a infração. É o “crime sem o devido castigo”.
O Cade já tem jurisprudência sedimentada para considerar um caso similar aos efeitos negativos do cartel, o que traduz em uma análise por objeto ou per se
No que tange ao segundo ponto de melhora, a Resolução 17 de 2016 disciplina as hipóteses de notificação de contratos associativos. Conquanto dito marco normativo seja uma melhora com relação ao de 2014, este deve ser aprimorado. O caso Gol-Azul12 foi um alerta importante, pois o codeshare feito entre elas em 23/5/2024, sem notificação ao Cade, pode ter suscitado conduta anticompetitiva e a Superintendência do Cade, ao abrir uma investigação em 2024, optou por arquivá-la em maio de 2025, mesmo depois de elas terem informado ao mercado que fizeram um MOU para uma possível fusão em janeiro de 2025.
Sem entrar no mérito do caso em tela, um codeshare é um acordo para vender o produto do concorrente em seu sistema. A depender do mercado relevante, é um acordo que pode resultar em efeitos negativos para o consumidor brasileiro, logo deveria ser um caso de indubitável notificação. Mesmo por sua potencialidade. Codeshare entre empresas estrangeiras não causa receio concorrencial, mas entre duas de três empresas brasileiras, obviamente que sim. A Resolução 17, portanto, não ajudou em nada: nem para as partes e nem para o Cade. Não por menos o Tribunal do Cade indicou depois que a notificação foi determinada com base no artigo 88, §7°.
O artigo 90 da Lei no 12.529 descreve que um ato de concentração econômica ocorre por meio de uma fusão (I), aquisição (II), incorporação (III) ou por contrato associativo, consórcio ou joint venture (IV). A Resolução 17 “tentou” regulamentar o contrato associativo descrito no inciso IV. As melhoras poderiam ser duas. A primeira seria desconsiderar o tempo do acordo, se menor ou maior do que dois anos, pois esta variável é irrelevante. Modificar-se-iam, assim, os artigos 2o e 5o, e o 3o seria eliminado. Além disso, a segunda melhora seria indicar no inciso I do artigo 2o que o contrato estabeleça compartilhamento de variáveis comerciais ou de estratégicas anticompetitivas (ou algo nesta linha) e retiraria o compartilhamento dos riscos e resultados da atividade econômica, pois mais confunde do que ajuda.
Com relação ao terceiro e último tema, do ponto de vista de quem foi conselheira do Cade e secretária da Economia (Fazenda, Orçamento e Planejamento), observam-se casos de cartéis em compras públicas estaduais e municipais. Isto porque, por maior cuidado que os agentes públicos possam ter nas licitações, seguindo os procedimentos indicados nos manuais, estes, na maioria dos casos, não estão capacitados para detectarem dita infração concorrencial. Os agentes privados participantes de licitações públicas, por sua vez, parecem desconhecer a existência da autoridade nacional da concorrência ou ignorar a sua figura.
Do ponto de vista de quem foi conselheira do Cade e secretária da Economia observam-se casos de cartéis em compras públicas estaduais e municipais
Dito isso, seria meritório que houvesse uma ampla capacitação nos subnacionais, de forma estruturada. Como o Cade tem uma estrutura enxuta, o indicado seria fazer parcerias locais para além dos Ministérios Públicos, abarcando também os tribunais de contas dos estados (TCEs), as polícias civis e as secretarias de Fazenda, incrementando seminários e treinamentos, como faz a OCDE. No caso dos poderes executivos, o Cade poderia ter parcerias com o Consefaz, Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, e, em breve, com o Comitê Gestor.
Em suma, as três propostas acima visam contribuir ao debate de como o Cade poderia trilhar veredas férteis. Não deixam, pois, de fazer parte de uma agenda microeconômica que traga os incentivos corretos aos agentes econômicos. Indubitavelmente – e de acordo com os ensinamentos de Luigi Zingales13 –, a meta do Cade é ser pró-concorrencial e não pró-business. Além disso, ser um promotor da dissuasão de condutas anticompetitivas, sem descuidar de ser, também, fomentador de um ambiente com a maior segurança jurídica possível.
PA 08700.000284/2022-72, SEI 1443323. Parabenizo o conselheiro Diogo Thompson Andrade e seu gabinete pelo eloquente voto, com uma análise cuidadosa e trabalhosa, que oportuniza a comunidade antitruste a iniciar um diálogo republicano, de forma bem fundamentada e criando veredas mais céleres de análises no Cade. Este texto objetiva contribuir com a continuidade dessa discussão iniciada no seminário.
Disponível em: https://go.fgv.br/DFb3LPmMboq.
3Em voto-vogal de minha autoria (PA 08012. 009566/2010-6, SEI 0322361), no item 9, sugeri o arquivamento do caso porque não havia sido analisado os efeitos negativos da conduta e dado que não era um caso per se/por objeto.
O voto mencionado na nota de rodapé 2 faz ditas análises. Outro voto de minha relatoria que também contempla uma análise do mercado e do poder de mercado é o PA 08012.000758/2003-71, SEI 0534749.
Em voto de minha relatoria (PA 08012. 008407/2011-19, SEI 0557295), no item 54, tem uma menção da necessidade de análise do mercado relevante e do poder de mercado, muitas vezes não elaboradas.
§2° Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.
Disponível em: https://go.fgv.br/2EwqAr5pYYl.
Idem à nota de rodapé
Idem à nota de rodapé 1, item 71 do voto.
Em voto-vogal de minha autoria (PA 08012. 010470/2005-77, SEI 0120736), no item 3, exprimo a necessidade de o Cade ter que impor sanções pecuniárias de acordo com a vantagem auferida dos autores e/ou dano à sociedade.
O artigo 37 da Lei no 12.529 (cap. III) trata das penas. O inciso I refere-se à vantagem auferida e o inciso II, a associações.
APAC 08700.003565/2024-49.
Essa discussão pode ser lida em https:// go.fgv.br/DsbmgUcjPd5 ou no livro de Luigi Zingales A Capitalism for the People: Recapturing the Lost Genius of American Prosperity (https://go.fgv.br/XPtvA5skuAB).
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