A experiência Latam é inspiradora para evitar o voo kamikaze da fusão Gol-Azul
- Cris Schmidt
- há 3 dias
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Atualizado: há 9 minutos
O CADE, protetor dos direitos difusos dos consumidores, deve seguir preservando e estimulando a boa concorrência no setor e não permitir a fusão Gol Azul; o governo, por sua vez, deve propor políticas de Estado visando o longo prazo, para atrair investidores para o segmento, especialmente de empresas sólidas estrangeiras; e, por fim, a Latam tem uma bela estória de superação de crises e uma interessante história de dados e fatos a ser estudada. O brasileiro que anda de avião quer mais concorrência no setor de aviação civil, não menos.
No dia 08/ago/25 foi publicada uma nota no Radar Econômico, da Revista Veja[2], apontando que as conversas entre Gol e Azul sobre uma possível fusão esfriaram e o motivo seria porque a Azul está em recuperação judicial nos EUA (RJ, Chapter 11), com dívidas de cerca de R$35 bi. Teria a junção das duas entrado em “banho-maria” ou teria sido uma estratégia das Partes para amolecer os corações dos conselheiros do CADE, que estão analisando uma possível violação antitruste no contrato de codeshare feito em maio de 2024 entre Gol e Azul, o qual não foi notificado ao órgão antitruste e que, desde então, ambas vêm reduzindo inúmeras rotas? Nada se pode afirmar, mas a nota causa espécie. O que o brasileiro, que viaja de avião, poderia a aconselhar à dita autarquia?
Uma possível resposta, diante da ameaça da formação de um duopólio, em que um dos agentes terá 60% do mercado, seria: “CADE, negue esta fusão e foque no nosso bem-estar, que deseja mais concorrência no setor aéreo e não menos”. De fato, uma fusão entre dois dos três players que operam no país (Latam, Gol e Azul) causará um acidente irreversível ao bem-estar do brasileiro. Além disso, ter a Azul em Chapter 11 não é argumento para aprovar uma concentração econômica.
Isto porque a turbulência com a saúde da Azul provavelmente melhorará, assim como ocorreu com a da Gol e a da Latam, dado que as aéreas brasileiras têm ótimos índices de performance operacionais. E se, porventura for o caso de uma aquisição ou fusão, que a Azul seja comprada por (ou se alie a) uma companhia que não esteja operando no país. Empresas estrangeiras, como a American Airlines, por exemplo, já expressaram interesse[3]. A direção, assim, é longa e trabalhosa, mas clara: observar a experiência da Latam, uma fusão entre Lan Chile e Tam, ocorrida em 2012.
A entrevista de Jérôme Cardier, CEO da Latam, na Flap TV[4], é uma aula de liderança, gestão e visão, de quem conseguiu voar em um céu que não era de brigadeiro e que, atualmente, colhe os frutos desta longa jornada de aprendizados, mudanças e acertos. Seu plano de voo deve, assim, ser estudado e, se necessário, adaptado por companhias como a Azul.
Sabe-se que unir culturas empresariais não é trivial e para a Latam não foi diferente. Esta etapa demorou cinco anos, de 2012 a 2017. Reconhecendo estratégias equivocadas (copiar no Brasil a cultura Lan para a América Latina) e mudando ditas rotas para trajetórias de sucesso (para uma cultura Tam, com foco no passageiro), a Latam recuperou seu market share no Brasil (lembrando que a Avianca saiu do mercado em 2018) e hoje a empresa tem, segundo Cardier, o melhor Net Promoter Score (indicador de satisfação e lealdade de clientes) e o menor custo cliente/assento do setor. Antes, este último índice era 15% superior aos das demais empresas e hoje é 15% inferior.
Após este período de readaptação, quando o sol começara a brilhar para a Latam, o vírus COVID-19 aterrizou na Terra. A pandemia (de 03/2020 a 04/2022) trouxe desafios para o setor aéreo no mundo, em geral, e, em especial para o Brasil, uma vez que o governo não ajudou financeiramente as empresas locais, como ocorreu em outros países (ainda que tenha abrandado algumas normas, como a da postergação da devolução do dinheiro sobre passagens não voadas). Como permitir aos colaboradores da aviação homeoffice? Resultado: apesar das demissões e tentativas frustradas de diminuição nos custos, a Latam entrou em RJ em maio de 2020; a Gol, em janeiro de 2024; e a Azul, em maio de 2025. O júbilo, contudo, é observar que a Latam saiu desta situação em nov/2022 (2 anos e meio) e a Gol, em julho/2025 (1 ano e meio). No caso da Azul, embora esta tenha optado por entrar no “modo resgaste” mais tardiamente, espera-se que a empresa saia deste cenário de crise financeira até fev/26[5], copiando suas concorrentes brasileiras.
Há ao menos três lições que se pode ter com relação à condução da Latam na RJ. Conquanto a Azul tenha um desafio maior do que as demais tiveram, pois hoje há uma demanda reprimida por aeronave, o que pode ensejar numa negociação mais dura acerca da devolução de aeronaves; o importante não é focar em uma saída rápida do Chapter 11, mas que seu pouso seja fundamentado e durador. Afinal, ter saúde financeira de longo prazo é uma condição necessária para que se possa ir adiante. Como esta não é uma condição suficiente, há duas outras lições a mencionar.
Além de ter como prioridade uma sólida (e não rápida) retirada da RJ, a renegociação tem que considerar todos os itens do passivo do balanço da empresa: desde o custo dos aeroportos e aeronaves, coração do negócio, passando por dispêndios em TI e equipamentos. O resultado, portanto, precisa trazer mudanças estruturais, para que o custo operacional diminuía permanentemente, e, assim, novas rotas possam coexistir com a mesma frota. Por último e não menos relevante, a terceira lição seria ter como eixo fulcral a experiência do passageiro. De fato, quem é “black signature” na Latam se sente “mais que especial” e isso não veio por acaso ou sem uma meticulosa estratégia. Não à toa, segundo Cardier, o resultado do 2º tri/25, período de baixa temporada, foi o melhor da história, sendo superior do que certos meses de alta temporada.
A saída do Chapter 11, destarte, precisa permitir que a Azul volte a ser um player competitivo. Atualmente, os constantes cancelamentos e alterações de voos têm afetado negativamente a percepção dos passageiros e aumentado suas custas judiciais, resultando negativamente na sua margem Ebitda. Isso, entretanto, pode ser revertido sem uma união com a Gol, como vem sendo aventado. Não só porque o CADE já se manifestou com rigor sobre concentrações no setor [6] ou porque Gol e Latam são casos de sucesso de saída de RJ, mas porque eliminar concorrentes efetivos e potenciais é uma “facada na concorrência”.
O governo (ANAC + Ministérios de Portos e Aeroportos), por sua vez, pode ajudar. Sendo a tese da failing firm inadequada neste caso[7] para justificar uma fusão entre Gol e Azul, tendo o mercado de aviação civil aberto em 2017, havendo empresas estrangeiras querendo entrar no maior mercado da América Latina; por que só há três empresas no mercado brasileiro? É provável que seja por falta de planejamento do Estado quanto a aumentar o tráfego aéreo, além do Custo-Brasil.
De fato, alguns exemplos podem ser dados sobre o Custo-Brasil[8]. Conquanto a tributação seja elevada e similar a de outros países neste segmento, a complexidade de suas regras é surreal. Oxalá a Reforma Tributária do Consumo (EC132/23) enderece este tópico. Um exemplo é o fato de as aéreas não fazerem vendas a bordo, por conta do intrincado ICMS. Afinal, nos ares, qual a alíquota (de que Estado) deveria ser adotada? Além disso, a insegurança jurídica com relação às regras setoriais é expressiva. Por exemplo, a cobrança da bagagem é um tema que perdura há anos. As legislações consumerista e trabalhista são outros obstáculos que tornam o ambiente de negócios extremamente ácido para o investidor. Por fim, cabe lembrar a elevada judicialização que, além de insana, tem piorado. Segundo Cardier, o custo com o judiciário em 2025 será de R$400 milhões, o dobro de antes da pandemia.
Por último, cabe ressaltar que o modelo de concessão dos aeroportos é adverso para o empreendedorismo, o que pode ser revisado. Em vez de mirar no valor da outorga, o Estado deveria focar na longevidade salutar da concessão (30 anos em geral) e na boa prestação de serviços para o consumidor. Por isso, aliás, que prestar serviço nos aeroportos é pouco atrativo e os preços são elevados. O ideal seria ter um modelo que objetivasse a eficiência da oferta e do serviço para o brasileiro e, assim, ter mais voos decolando e pousando nos distintos rincões do país, ter mais movimentação de passageiros nos saguões de todos os aeroportos e ter produtos e serviços mais baratos para os consumidores!
Em suma, o CADE, protetor dos direitos difusos dos consumidores, deve seguir preservando e estimulando a boa concorrência no setor e não permitir a fusão Gol-Azul; o governo, por sua vez, deve propor políticas de Estado visando o longo prazo, para atrair investidores para o segmento, especialmente de empresas sólidas estrangeiras; e, por fim, a Latam tem uma bela estória de superação de crises e uma interessante história de dados e fatos a ser estudada. O brasileiro que anda de avião quer mais concorrência no setor de aviação civil, não menos.
Referências:
[1] Mestre e doutora em economia pela EPGE/FGV, Visiting scholar por Columbia/ NYC, Vice-presidente da ABDE, Ex-Conselheira do CADE e Ex-Secretária Adjunta de Concorrência e Regulação da SEAE/MF.
[2] https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/o-apetite-da-gol-para-finalizar-fusao-com-a-azul/?utm_source=chatgpt.com
[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/06/condicoes-de-mercado-inibem-chegada-de-aereas-estrangeiras-no-brasil-diz-airbus.shtml?utm_source=chatgpt.com
[5] https://www.panrotas.com.br/aviacao/empresas/2025/08/azul-projeta-saida-do-chapter-11-entre-dezembro-de-2025-e-fevereiro-de-2026_220144.html?utm_source=chatgpt.com
[6] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-transporte-aereo-de-passageiros-e-cargas-2017.pdf, tópico 3.2
[7] Massimo Motta. Competition Theory: theory and practice, seção 5.1.
[8] https://www.reuters.com/business/aerospace-defense/market-conditions-drive-international-airlines-away-brazil-airbus-says-2024-06-17/?utm_source=chatgpt.com
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